Quanto custa um hambúrguer? Vinte reais? Talvez mais, talvez menos. Mas quanto ele custaria se você tivesse que produzir todos os ingredientes do zero? É fácil prever: seria o sanduíche mais caro e demorado da história. O motivo? Especialização!
Milton Friedman já dizia que ninguém no mundo é capaz de fabricar um lápis do zero. Um simples lápis exige madeira – que precisa ser plantada, cultivada, colhida – e ferramentas para o corte, que demandam metal, petróleo, transporte, energia… E nem começamos a falar da grafite ou da junção de tudo isso em um único objeto. A resposta racional é dividir essa cadeia produtiva entre milhares (ou milhões) de pessoas especializadas. Um sistema baseado em cooperação e especialização.
Voltando ao hambúrguer: um youtuber americano tentou fazer tudo do zero. Cultivou uma horta, dessalinizou água, fez queijo artesanal e até criou uma galinha. Após seis meses de trabalho, conseguiu finalmente morder um hambúrguer que lhe custou aproximadamente 8 mil reais, convertendo o valor.
Você não paga 1 mil em um lápis ou 8 mil em um hambúrguer porque vive em uma sociedade onde as pessoas se especializam. É isso que reduz custos, melhora a eficiência e torna a vida possível. Especialização é uma das marcas mais inteligentes da civilização.
Se isso tudo faz sentido até para fazer um lanche, o que dizer da segurança pública?
Policiamento não se resume a carregar uma arma qualquer, mudar a cor da farda, comprar um sistema, ou mudar o nome de um setor. As diferentes modalidades de policiamento possuem doutrinas próprias, finalidades distintas, princípios específicos. A Atividade de Inteligência é uma ferramenta fundamental no enfrentamento ao crime, mas se mal aplicada, como no caso do chamado “agente híbrido” — esse Frankenstein funcional que tenta reunir todos os bônus de todas as funções —, ela se torna uma ameaça à própria lógica de especialização que levou décadas para ser construída.
Possíveis vantagens do agente híbrido
Sim, vamos às supostas vantagens: o conhecimento tático-operacional de quem está nas ruas; o acesso facilitado a informações em abordagens; a agilidade de resposta por já estar em campo; e, claro, a “economia de recursos” ao evitar estruturas duplicadas.
Mas sejamos honestos: todas essas “vantagens” são superficiais, ilusórias ou, pior, contraproducentes.
- Conhecimento Tático-Operacional: O conhecimento produzido pela inteligência serve justamente para alimentar as unidades operacionais. Basta que esse conhecimento circule adequadamente. Quem precisa saber o que está acontecendo na área X deve receber a análise pronta. Simples.
- Acesso Facilitado a Informações: Informação não é conhecimento. Produzir inteligência exige método. Coletar dados brutos em abordagens é apenas o primeiro passo. O policial fardado é um dos canais de coleta — e só. A inteligência de verdade exige técnica e refinamento. Seu chefe não quer saber quantos CPFs você consultou, mas o que você concluiu disso.
- Resposta Rápida: É justamente o envolvimento emocional que a inteligência busca evitar. Ter um setor separado reduz vieses e decisões impulsivas. Pessoas tendem a defender hipóteses prévias, mesmo diante de dados contrários. Agir rápido pode significar agir mal. Inteligência existe para pensar, não para reagir como uma garotinha descontrolada.
- Economia de Recursos: Cortar estruturas especializadas para economizar é como vender os instrumentos de um cirurgião para comprar mais bandagens. Como já demonstrado, especialização reduz custos. Isso não é uma opinião: é base de teoria econômica reconhecida mundialmente. Friedman não ganhou o Nobel à toa. O conceito de Estado-Maior se fundamenta em setores especializados — exatamente para evitar o desperdício causado pela improvisação constante.
Se qualquer um pode fazer, por que temos especialistas?
Se qualquer policial pode portar um fuzil com magnificador, para que mantermos snipers no Batalhão de Operações Especiais? Se escudo e bastão bastam, por que um Batalhão de Choque? Se qualquer um pode negociar com sequestradores, por que formar unidades de Negociadores? E se qualquer um pode pilotar motos, para que o Grupamento Tático de Motos?
Seguindo a mesma lógica: se qualquer policial pode fazer inteligência, por que manter um setor especializado ou uma Agência Central de Inteligência?
A atividade de inteligência não é um “plus” que qualquer policial pode executar entre uma ronda e outra. É uma ciência com métodos próprios: análise de dados, SIGINT, proteção de fontes. Transformá-la em “bico” de ostensivo é como pedir a um padeiro que faça cirurgias cardíacas nas horas vagas. Os riscos e prejuízos do modelo híbrido são claros:
- Perda de Especialização: Inteligência não se resume a acessar bancos de dados. Envolve técnicas específicas, planejamento, análise, OSINT, SIGINT, etc. Reduzir isso a uma função extra no dia a dia do patrulheiro é sucatear a atividade.
- Comprometimento da Segurança: Se o policial ostensivo for identificado como agente de inteligência, ele se torna alvo – ou até mesmo é recrutado. E pior: um alvo previsível, visível, rotineiro. Um risco que compromete a si mesmo e à missão.
- Conflito de Interesses: O agente que planeja e executa pode distorcer os objetivos. Uma operação pode virar espetáculo, não por necessidade tática, mas por vaidade ou conveniência institucional. O mesmo policial que coleta dados pode priorizar ações midiáticas (e politicamente convenientes) em vez de investigações discretas.
- Vazamentos e Falta de Controle: A inteligência requer sigilo. Um policial ostensivo pode comprometer tudo numa conversa informal, uma entrevista, a elaboração de um ROP, sem sequer perceber. Inteligência é invisibilidade. É anonimato.
- Sobrecarga Operacional: Nenhuma atividade policial é leve. Policiamento ostensivo já é desgastante por si só. Acumular funções significa estresse, cansaço e erro. O resultado é que nem uma coisa nem outra feita com excelência, os erros aumentam – e o preço se paga em vidas.
A especialização não é um capricho. É uma exigência constitucional, um imperativo da técnica, uma necessidade prática – e a única forma de não transformar a inteligência policial em um hambúrguer de R$ 8.000 reais. Não se trata de criar castas dentro das instituições, mas de garantir que cada função seja desempenhada com excelência. Especializar não é isolar: é cooperar com qualidade. Por que a Inteligência precisa ser especializada?
- Métodos Distintos: Consultar CPF no Infoseg não é inteligência. Como dito acima, Inteligência envolve análise, antecipação, proteção de dados sensíveis. Não se improvisa isso.
- Sigilo x Exposição: Um agente de inteligência não pode ser reconhecido. Já o ostensivo, por definição, deve ser visto. É a contradição em estado puro.
- Estrutura Hierárquica: A separação entre operacionais e analistas serve justamente para blindar a produção de conhecimento de interferências e vazamentos. Isso é doutrina, não preciosismo.
O problema não está em compartilhar informação — está em diluir competência. Se uma mola de relógio decidir virar ponteiro, o sistema para. Simples assim. Cada peça tem sua função. E nenhuma é irrelevante.
É tentador querer fazer tudo, estar em todas, ser o protagonista. Mas ser híbrido? O híbrido tenta colher os bônus dos dois mundos, enquanto escapa sorrateiramente da responsabilização. À noite, guarda a farda, omite o nome e simula o anonimato típico da atividade de inteligência; de manhã, corre para aparecer na imprensa e gabar-se da eficiência de sua unidade ostensiva. Isso não é abraçar uma oportunidade — é ser oportunista. Híbrido? Híbrido é o pato: nada, voa e anda… mas não é referência em nenhuma dessas coisas.
Senhores, quem faz tudo, não faz nada bem feito.